Conheça mais sobre fauna e flora nas cidades
* Ophelis de A. Françoso Jr
Em artigo anterior neste mesmo espaço, tratei genericamente da ecologia urbana e seus pressupostos, abrangendo também um viés político e social que interfere em parte de seus fundamentos (Ecologia Urbana (e Humana): um ponto de partida). Na ocasião, mencionei que alguns aspectos seriam oportunamente detalhados. Este artigo pressupõe assim um primeiro desdobramento do tema qual seja, a natureza pré-existente, a comunidade que a substitui e as áreas públicas que tentam resgata-la.
O território geográfico chamado de cidade, outrora encerrava uma geologia específica, uma condição climática determinada, uma fauna e uma flora. Todos esses elementos interagiam para condicionar um dado ecossistema que vigorava há pelo menos alguns milhões de anos. A partir da ocupação humana, esse ambiente é rapidamente transformado. A vegetação é derrubada para dar lugar a construções de alvenaria, vias são construídas impermeabilizando o solo, e os animais são progressivamente desalojados ou mortos. Essas transformações ambientais são tão profundas que a fisionomia rapidamente torna-se irreconhecível, com alterações significativas no clima e no estrato biológico. O entorno das cidades também costuma ser modificado por empreendimentos agropecuários, posto que ele é necessário para sustentar o crescimento da população que se estabelece.
Fauna e flora diferentes
Após suas fundações, as cidades permanecem tão perenes que diversas gerações passam por ela sem nunca terem vivido em ambiente natural. A fauna e a flora das cidades são substituídas por espécies diferente daquela do entorno, sendo estas progressivamente “empurradas” para regiões cada vez mais longínquas.
Uma pessoa leiga em biodiversidade certamente não está familiarizada com os animais que viviam onde hoje está sua própria cidade. Ao invés disso, conhecem muito bem pombas, pardais, ratos, baratas, moscas, lagartixas e toda sorte de espécies que jamais são encontradas em ambientes naturais, mas apenas em cidades, principalmente associada aos seus dejetos. Esses organismos, geralmente comensais, acompanham os humanos há milhares de anos, constituindo o que chamamos de fauna sinantrópica. Muitos foram trazidos ao continente americano nas caravelas dos colonizadores europeus, espalhando-se rapidamente pelos habitats artificiais que os humanos criam no entorno como: casas, jardins, fazendas, margens de estradas, lixões e tantos outros. A fauna sinantrópica inclui muito (mas não só) do que consideramos como pragas ou que espalha doenças, as chamadas zoonoses. Por isso, o contato contínuo com esses organismos introjeta uma ideia errônea de que a presença de fauna em geral é desagradável ligada a doenças, portanto, passível de ser eliminada.

Nessa toada, a fauna local, que não tem nada com isso, também passa a ser alvo de extermínio. Um exemplo clássico é o combate incessante contra serpentes e anfíbios, ainda que a maioria seja inofensiva. Pouco é divulgado sobre o importante papel desses animais na manutenção do equilíbrio ambiental ao predar insetos e roedores que agem como vetores de doenças. Como se já não bastasse a perda progressiva de seus respectivos ambientes, a escassa população deles ainda é perseguida e morta devido ao desconhecimento e à ignorância científica básica da população. Por fim temos os caçadores, adeptos de um nefasto extermínio da biodiversidade, e que se escondem sob os mais absurdos subterfúgios como o de “caçar para comer”; evidentemente sem sustentação quando se considera uma exuberante cadeia de produção de proteína animal a qual temos fácil acesso. Ressalvo aqui os povos da floresta, que há milênios se utilizam da caça como forma genuína de subsistência, sempre em equilíbrio com o que a natureza é capaz de repor.
Suprindo as necessidades
O acesso à proteína animal – outro fator que contribui muito para a substituição da fauna nativa – advém da domesticação. Diversas espécies animais e vegetais, desenvolvidas para suprir suas necessidades de vestimentas, alimentos e serviços, acompanha os humanos há pelo menos 14 mil anos. Ao fundar um povoado, esses organismos geram um impacto significativo na vegetação primitiva e na teia alimentar pré-existente. Vegetais como o trigo e o milho, usualmente melhores adaptados, por vezes chegam a eliminar por completo seus competidores locais. Na maioria das vezes os próprios humanos se encarregam de eliminá-las propiciando assim melhores condições para suas espécies eleitas. Concentrados em empreendimentos agropastoris, as monoculturas além de provocar acentuada retração da diversidade, ainda funcionam como atrativos de pragas de cultivares específicos ou zoonoses as quais acabam por protagonizar uma grande explosão populacional.
Assim, a partir do desenvolvimento das cidades, novas relações ecológicas se estabelecem tornando a fisionomia primitiva praticamente irreconhecível. Nesse novo cenário, caracterizado pela perda da diversidade, pela introdução de novas espécies geneticamente melhoradas, pela chegada da fauna sinantrópica e pelo combate às espécies nativas, associado às poucas espécies sobreviventes do bioma original, o equilíbrio ambiental atinge um novo patamar, geralmente caracterizado pelo empobrecimento das teias alimentares e das relações ecológicas e pela extinção de espécies a uma taxa nunca vista antes.

Secundariamente, a retração da cobertura vegetal também interfere acentuadamente no balanço do carbono atmosférico por meio de duas frentes: devido ao empobrecimento da cobertura vegetal, o que acarreta menor sequestro de carbono e outra, bem mais grave, por meio do aumento das emissões de gases de efeito estufa decorrentes do uso de veículos e dos poluentes despejados no ar pelas indústrias e pelo comércio que se estabelecem. Além de contribuir para aumentar o efeito estufa, a energia solar ainda é refletida sob a forma de calor pela alvenaria, provocando um significativo aumento na temperatura local.
Diminuição da fauna
O impacto na fauna também se faz sentir. Relatórios recentes de órgãos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU) dão conta de que as populações de mamíferos, répteis, anfíbios, aves e peixes caíram 60% entre 1970 e 2014 devido à expansão do asfalto, desconsiderando-se os invertebrados, o que agravaria ainda mais essa cifra. É provável que ainda neste século, perderemos ao menos um milhão das quase oito milhões de espécies na Terra devido à presença humana.
Possivelmente os efeitos nefastos que a natureza nos devota como resposta à agressão humana decorra desses inúmeros problemas urbanos que se acumulam. Eles passam a nos incomodar à medida em que constatamos, consciente ou inconscientemente, o quanto perdemos em qualidade de vida ao erigir o modelo clássicos de cidades que hoje cultivamos, centrada na economia à base do petróleo e do concreto. Ou ainda que essa privação da natureza também nos incomode como consequência de nossa própria ascendência biológica como ela se fosse uma marca genética indelével em nosso DNA. De uma maneira ou de outra, após décadas, forças sociais mais conscientes desses problemas passaram a clamar dos poderes públicos ações que possibilitem uma certa reconexão com a natureza perdida, como uma espécie de abrandamento da aridez do asfalto e do concreto.

Por isso, à medida que as cidades crescem, aumenta também a demanda por equipamentos públicos que reproduzam parte da natureza ou uma certa cópia dela (ainda que malfeita e saneada) como: praças, parques, arborização pública, jardins zoológicos e botânicos, museus de história natural etc. No plano individual, cidadãos passam valorizar o paisagismo, a construir jardins, adquirir plantas cultivadas em vasos e animais de estimação. Parte da população também se encanta com peixes e aves, estas atraídas para comedouros ou ainda presas em gaiolas. Todos esses movimentos, decorrentes daquela necessidade de reconexão com o ambiente primitivo, nos dão uma sensação de que o problema do excesso de asfalto pode ser contornado, ao menos em certa medida.
Cidades e soluções
Frente a esse panorama e com base em experiências urbanas e bem-sucedidas, o que poderíamos fazer para frear o quadro de empobrecimento ambiental? Tanto indivíduos como gestores urbanos podem trafegar por caminhos de notório sucesso visando abrandar o depauperamento ambiental e tornar as cidades mais sustentáveis. Podemos elencar alguns.
• Investimento maciço em áreas verdes: parques, jardins, praças, vias urbanas arborizadas e suas respectivos criadouros como viveiros de plantas e jardins botânicos. Todas as referências ambientais urbanas são assim reconhecidas pela extensão de ruas arborizadas e praças. Além de aumentar o conforto térmico, a arborização nos dá uma sensação de acolhimento, de bem-estar e de reconexão com a natureza. Uma cobertura vegetal exuberante também aumenta: a fixação de carbono, a produção de oxigênio, o sombreamento e a umidade relativa do ar abrandando a aridez para quem caminha ou pratica ciclismo. À parte, ainda se ganha na geração de saúde com o transporte movido a músculos. As árvores também diminuem e retardam o escoamento das águas pluviais, além de possibilitarem a infiltração delas no solo contíguo. No Brasil, cidades como Goiânia, Campinas, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba (veja infográfico abaixo) tem sido apontadas como referências na manutenção e preservação de áreas verdes. Entretanto, é de fundamental importância o repovoamento com espécies da flora e da fauna locais, abandonando o hábito de se recorrer às espécies exóticas ou introduzidas, ainda que sejam oriundas do próprio país. Os animais que interagem com a vegetação escolhem as espécies nativas porque essas estão marcadas em suas respectivas bagagens genéticas. São essas plantas que os primatas e as aves, por exemplo, selecionam para nidificar, comer seus frutos e dispersar as sementes. Elas mesmas não reconhecem como alimento as plantas que não fazem parte de seus respectivos repertórios comportamentais. As áreas verdes também permitem que a água pluvial seja devidamente percolada no solo, evitando inundações e enchentes típicas de excesso de impermeabilização asfáltica.

é a que tem a maior população de todas
• Como parte das políticas de amenização dos danos provocados pela expansão urbana, o poder público pode conceder benefícios fiscais a empresas dispostas em investir em áreas verdes e reflorestamento. Essas parcerias seriam feitas de modo escalonado com a iniciativa privada mediante uma política genuína de responsabilidade ambiental continuada. As contrapartidas seriam o plantio de árvores nativas em áreas sob suas respectivas responsabilidades e a exigência contratual de manutenção periódica. Uma política similar, porém obrigatória, seria de forçar entes privados da construção civil, por meios legais, a destinar significativa parte do terreno para a construção de áreas verdes visando compensar a construção de grandes empreendimentos imobiliários. No âmbito das construções, o poder público pode publicar e fazer cumprir manuais técnicos para edificações sustentáveis.

• Reserva de áreas para neutralização de carbono em áreas rurais próxima às suas cidades. Qualquer ente físico ou jurídico emite gases de efeito estufa, medidos em toneladas de CO2. Uma empresa especializada em vendas de créditos de carbono, como a própria Ecooar, calcula a quantidade de mudas a serem plantadas para compensar as emissões. O cliente ganha então um selo verde, que comprova sua responsabilidade ambiental. As cidades do entorno têm uma melhora na qualidade de vida de seus habitantes e também na qualidade do ar que se respira por meio de um modelo de vida sustentável.
• Incentivo a telhados verdes e jardins verticais. Considerando as grandes capitais, telhados verdes, também chamados de ecológicos são muito utilizados em projetos sustentáveis. Eles constituem soluções de baixo custo para o aproveitamento de espaços perdidos. Os benefícios são inúmeros. Permitem o gerenciamento de volumes relativamente grandes de águas pluviais. As plantas e a terra do teto verde funcionam como uma espécie de filtro para a água, que pode ser armazenada mais limpa. Depois ela pode ser usada na irrigação de jardins verticais associados e então ser direcionada para dentro das habitações para uso nas bacias sanitárias. Além disso essas verdadeiras plantações associadas à alvenaria possibilitam atingir melhor conforto térmico da edificação, especialmente no verão, diminuir a oscilação da umidade relativa do ar no entorno, diminuir a poluição sonora, além de contribuir para minimizar o efeito estufa ao sequestrar o carbono atmosférico. Diversos edifícios ainda utilizam seus tetos para plantação de comestíveis, gerando alimento e renda para os habitantes. Todos esses benefícios ainda podem ser associados à beleza estética de um bom paisagismo.
• Substituição da estrutura fundiária por minifúndios destinados à agricultura familiar. Nas áreas rurais contíguas às cidades, é de extrema importância o estabelecimento de pequenas propriedades rurais para produção de alimentos ao invés da presença de grandes monoculturas já que estas constituem por si um fator de expulsão da fauna e da flora nativas. Os grandes latifúndios mecanizados também geram desemprego e, consequentemente, êxodo rural,contribuindo para precarizar ainda mais o equilíbrio urbano. Nesse processo os membros mais jovens das famílias se deslocam para as cidades onde acabam marginalizados em suas periferias, agravando ainda mais os problemas sociais. Além disso o modelo de agronegócio que sustenta os grandes latifúndios baseia-se na produtividade e no lucro excessivos, o que exige o uso de adubos químicos e defensivos agrícolas interferindo assim na saúde das populações do entorno, envenenando o solo e os lençóis freáticos adjacentes. Outros efeitos secundários como poluição, empobrecimento do solo e desertificação tem sido fartamente relatados em áreas de grandes empreendimentos agropastoris. Por outro lado, a agricultura familiar, feita com base em técnicas de cultivo praticamente personalizadas, permite que as famílias vivam da renda dos produtos que plantam, gerando um número bem maior de empregos e fixando as populações no campo. Além disso, como suas técnicas cultivo são de baixo impacto ambiental, a agricultura familiar é considerada mais sustentável sob o ponto de vista ambiental.Finalmente, uma característica fundamental para o equilíbrio está na diversidade de produtos cultivados pelos pequenos proprietários, o que possibilita a coexistência dessa produção com boa parte da fauna e da flora nativas, aumentando significativamente a biodiversidade.
O cumprimento desses itens promoveria não somente a volta da vegetação nativa como também de animais associados, ao menos em maior grau do que aquele observado em cidades onde esses cuidados ambientais deixam de ser tomados. Para os habitantes destas, não restará alternativa a não uma vida abreviada por um ambiente mais poluído, mais pobre e mais inóspito.
* Ophelis de A. Françoso Jr
Biólogo, mestre em Zoologia e doutor em Fisiologia pelo Instituto de Biociências da USP. Ex-bolsista Capes (Ministério da Educação) na Universidade da Califórnia Santa Bárbara. Ex-professor da Universidade Mackenzie, da Universidade de Garulhos, da Universidade Santo Amaro e da Fundação Instituto de Ensino para Osasco. Editor Executivo, autor de textos em diversas obras de Biologia para Ensino Médio e tradutor.