A Ecologia Urbana começa com estudos de base mais biológica, abordando a fauna e a flora que sobrevive ou se adapta às cidades
* Ophelis de A. Françoso Jr
A Ecologia Urbana, como o nome sugere, é uma subárea da Ecologia que estuda os fenômenos biológicos que operam dentro das cidades. Seus especialistas procuram informar e incentivar o diálogo sobre questões ecológicas relacionadas às cidades (qualquer que seja o tamanho), ao planejamento delas e aos assuntos metropolitanos. Nos últimos anos, observou-se uma forte tendência interdisciplinar à medida em que profissionais de diversas áreas tem contribuído com propostas para uma coexistência entre os seres humanos das cidades e os processos ecológicos de forma a agregar qualidade de vida às populações flageladas por uma progressiva “expulsão da natureza”.
A Ecologia Urbana começa com estudos de base mais biológica, abordando a fauna e a flora que sobrevive ou se adapta às cidades e as relações que elas estabelecem com as áreas verdes, com a alvenaria e com os seres humanos. Já sob esse ponto de vista, as cidades podem ser consideradas como ecossistemas específicos. Com o avanço da era industrial e com o consumo de massa, os problemas ambientais, que já não eram pequenos, foram aumentando em número e em gravidade, o que fez mobilizar engenheiros florestais, geógrafos, agrônomos, urbanistas, engenheiros, químicos, sociólogos além de dezenas de outros profissionais.

A Ecologia Urbana procura também sensibilizar os atores envolvidos com planejamento e governança municipais para se apropriarem adequadamente das causas sustentáveis. Para isso, é importante compreender como o desenvolvimento das cidades substituiu os ambientes primitivos ocasionando, ao longo do tempo, uma suposta já mencionada “perda de natureza”.
Desafio mais importante ainda tem sido o de intervir nessa realidade para dotar seus habitantes de uma qualidade de vida digna ponderando o que poderia ser expropriado e o que seria fundamental manter em uma fronteira urbana que, ao longo da história, só avança. Recordemos que hoje, ao contrário de um passado recente, a maioria (cerca de 80%) da população brasileira vive nas cidades.
Ecologia das cidades
A necessidade de discutir uma ecologia das cidades mostra seu valor ao nos depararmos com uma miríade de problemas que cresce em proporção direta com o aumento populacional. O maior impacto dessa ocupação, geralmente desenfreada e caótica, é com certeza no ambiente que ela substitui. Como se fosse uma reação, mais cedo ou mais tarde essas agressões são naturalmente devolvidas.
A impermeabilização do solo e a canalização dos córregos e rios sob a forma de enchentes; o excesso de alvenaria e a escassez de áreas verdes, como aquecimento decorrente das ilhas de calor que se formam; a substituição da fauna nativa pela sinantrópica (associada à presença humana), carregada de zoonoses; as emissões de carbono que contribuem para o efeito estufa; as poluições dos mais variados tipos (sonora, luminosa, da água, do solo e do ar); e o sedentarismo, como comprometimento da qualidade de vida além de tantas outras decorrências.
Afora isso, a geração de lixo nos conglomerados urbanos, a maior parte formada por dejetos de todos os tipos, principalmente aqueles derivados de petróleo como os plásticos, dos quais as sociedades humanas são tão dependentes, além de outras substâncias químicas, acabam por comprometer a qualidade das águas, inclusive as subterrâneas, consideradas as mais potáveis.

devido a construção desenfreada de prédios e avenidas
Faz parte da Ecologia Urbana proporcionar reflexões também sobre os problemas logísticos decorrentes do desenvolvimento. Por exemplo, como alimentar uma população que só faz crescer as cidades e no entorno delas? Nesse contexto faz sentido discutir, por exemplo, a necessidade ou não das gigantescas monoculturas, das estradas para escoar a produção e de novas cidades surgindo e crescendo ao longo desse caminho, geralmente incorporando cada vez mais os mesmos problemas apontados acima.
Essa realidade nos faz refletir, por fim, sobre o próprio modelo de desenvolvimento e de gestão adotado pelas cidades, geralmente privilegiando as relações de consumo excessivos, o acúmulo de capital, a concentração da renda e a consequente proletarização e exclusão social da maior parte das populações, sempre expulsas em direção às periferias desfavorecidas e esquecidas pelo Estado, notadamente nos países menos desenvolvidos. Daí decorrem também os problemas econômicos como especulação imobiliária – mais grave ao redor dos mananciais, falta de transporte eficiente e digno, hospitais e postos de saúde fora de alcance da maioria e escassez de equipamentos de lazer e, novamente, de áreas verdes.
O impacto ambiental
A deterioração ambiental impacta sobretudo a nós próprios, os seres humanos, os mesmos que causam todos os problemas e também os que impõem as maiores resistências às soluções. Por isso não basta analisar somente a estrutura urbana, os efeitos que ela causa sobre o meio ambiente, as quantificações devidas, os critérios adotados, a conscientização e os progressivos cuidados com a sustentabilidade.
Para além disso, os gestores e profissionais do ambiente devem tocar no ponto nevrálgico de sua causa mais fundamental: a estrutura de poder das sociedades humanas. Por isso, poderíamos dizer de antemão que toda Ecologia Urbana é, antes de tudo, uma Ecologia Humana, no sentido de que a maior parte dos problemas ambientais somente serão minimizados ou (idealmente) eliminados mediante a alteração das estruturas políticas e econômicas que promovem concentração de renda nas mãos das castas mais abastadas, a exclusão social, o desemprego, a miséria e a fome.

Assim, a restauração dos ambientes ecologicamente comprometidos (caso isso seja possível) passa necessariamente pela democratização dos meios de produção, dos sistemas de comunicação, pela participação da sociedade organizada e de seus especialistas, sendo as soluções geralmente produtos da multiplicidade de visões e de competências. Passa também pela informação e conscientização sobre as soluções ambientais, visando, sobretudo, as camadas menos escolarizadas, para que toda a sociedade se mobilize, saindo assim de um certo analfabetismo ecológico que só interessa aos que lucram com a deterioração.
Infelizmente, visões equivocadas como as que negam os impactos das atividades econômicas deletérias para o meio ambiente, que promovem a qualquer custo o consumo de produtos à base de petróleo, que fixam metas de sucesso discriminatórias e desautorizam o repertório de conhecimentos científicos acumulados, predominam entre os gestores de muitos entes federativos. Romper essa barreira coloca em questão as próprias estruturas do poderio econômico e político que promovem políticas excludentes e exportadoras de miséria.
Por isso, para restaurar ambientes já deteriorados e impedir o avanço predatório é fundamental exercer uma severa e cotidiana militância, tanto na esfera comunitária, nos chamados movimentos sociais organizados como também fazer eco nas diversas instâncias autenticamente democráticas.
Bons resultados decorrentes dos estudos em Ecologia Urbana
Os bons resultados decorrentes dos estudos de Ecologia Urbana estão amplamente disseminados pelo mundo, com experiências bem-sucedidas em diversas cidades, a maioria delas nas sociedades mais democráticas e tecnológicas as quais conferem alto valor à sustentabilidade ambiental.
Essas nações, geralmente de elevado índice de escolaridade e informação, têm se empenhado em ações não somente dentro de seus próprios territórios, mas também destinando recursos a programas internacionais de apoio ao meio ambiente, mesmo em países ainda em desenvolvimento, como o Brasil, a Índia, a Costa Rica, a Colômbia, a África do Sul e tantos outros.
Além de compreender as especificidades de cada país, trata-se também de observar atentamente esses casos para incorporar essas experiências mundo afora, no sentido de humanizar o maior número possível de ambientes urbanos, abrindo espaços para a convivência de suas populações com a fauna, com a flora e com o ambiente físico que proporciona moradia, trabalho e lazer.

Finalmente, é importante deixar claro que as expressões “perda de natureza” ou “expulsão da natureza” aqui utilizada (sempre entre aspas) para denotar o avanço dos territórios urbanos de alvenaria sobre os ambientes virgens, podem ser compreendidos à luz de dois significados distintos. Segundo o senso comum, as cidades estariam à margem da natureza, essa última representada apenas pelos ambientes virgens.
De acordo com essa concepção, os seres humanos não fariam parte da natureza, mas estariam acima dela, manipulando-a em prol de seus interesses utilitaristas mais imediatos. Essa visão, felizmente ultrapassada, tem sustentado uma acentuada concepção antropocêntrica e intervencionista que legitima agressões ao meio ambiente que vem, há séculos, sendo cometidas. De outro lado, hoje sabemos que também fazemos parte da natureza, independentemente de vivermos em cidades. O fato dos hominídeos serem dotados de consciência e discernimento sofisticados só nos mostra que, colocando-nos à parte da natureza, esse será o primeiro passo em direção a uma hecatombe social que para muitos, já está em curso.
Pelo momento, podemos considerar que esse ramo da Ecologia atingirá seu ponto de estabilidade quando os ambientes urbanos estiverem suficientemente equilibrados para serem mantidos através das sucessivas gerações futuras, algo que infelizmente ainda soa utópico para a maior parte dos brasileiros.
* Ophelis de A. Françoso Jr
Biólogo, mestre em Zoologia e doutor em Fisiologia pelo Instituto de Biociências da USP. Ex-bolsista Capes (Ministério da Educação) na Universidade da Califórnia Santa Bárbara. Ex-professor da Universidade Mackenzie, da Universidade de Garulhos, da Universidade Santo Amaro e da Fundação Instituto de Ensino para Osasco. Editor Executivo, autor de textos em diversas obras de Biologia para Ensino Médio e tradutor.
Fotos: Fabio Lecci Merigue – Ambientalista e diretor da Ecooar